segunda-feira, 1 de abril de 2013

Assisti no Festival do Rio, ao filme Indomável Sonhadora, já disponivel para download, que ganhou o prêmio Câmera de Ouro no Festival de Cannes, concedido pelo cineasta Cacá Diegues. Este filme vem sendo muito elogiado pela crítica dos EUA - e do Brasil também - e já foi apontado como a possível surpresa do Oscar. Entretanto, ele vem sendo meio esquecido com o surgimento de grandes produções como
o bom mas americanófilo Argo, que tem a cara da América hollywoodiana, que os norteamericanos e brasileiros tanto gostam. Indomável Sonhadora, que custou apenas 1 milhão de dólares, bem menos do que muito filme feito por aqui, é um filme que mostra a America real, profunda, o sul dos EUA. E a América real não é a América de Barack Obama, mas a América do sul, cuja população pobre e excluída vê seus sonhos e cultura desaparecerem. Não sei o que vai acontecer com o Oscar ano que vem, não sei se este filme, bem recebido aqui no Rio, será indicado, mas, se for, espero que ganhe os prêmios principais. Torço por isso. Assim como o belo Preciosa, Indomável Sonhadora mostra a face nua e crua de uma América que de sonho não tem mais nada. Costumo dizer que Indomável Sonhadora é um filme brasileiro que nenhum cineasta contemporâneo daqui teria a sensibilidade de realizar. Indomável Sonhadora é um filme com cara de gente, de gente que sonha, vive e sofre, enfim, a cara do povo.
A mulher é fascinante. Porém, nunca cheguei ao centro do seu ser. Nunca toquei o nó do “ai”. Talvez não exista esse lugar secreto que faz a mulher vulnerável, esse pequeno botão elétrico em que tudo se retrai e se levanta para depois desfalecer. A sensibilidade da mulher propaga-se em ondas, que se estendem cada vez mais longe até tocar outros astros. Amar uma mulher é estabelecer contatos estrelares, vibrar com estrelas longínquas cuja existência sequer suspeitamos.
O amor cega. E às cegas adentro-me nele. Encontro corredores, portas que dão a um quarto de hotel, o lugar sagrado, o lugar infame, a esquina do monólogo. E, entre o bocejo e o abandono, sonho entre quatro paredes. O silêncio levanta-se e me interroga, piso o chão, sinto cheiros fortes de amantes enlaçados em conjunção, vejo vidros que embaçam o pensamento. E, por fim, ouço os hinos da manhã e volto à orfandade do dia a dia.
O amor me faz fechar os olhos. O amor decreta a suspenção de circulação do meu sangue. O amor fecha-se sobre sí próprio, fecha os olhos, fecha o acesso a tantas memórias que se engalfinham na entrada da alma, petrifica o tempo - horas incandescentes - causa gemidos. O amor arde como um candelabro de oito braços, uma árvore viva de raízes enlaçadas que deixam o corpo em brasa.
Acordar, abrir com esforço os olhos, ver como cenário o fim madrugada, respirar para o sangue bombear. Erguer a cabeça da almofada, mil e um pesos me empurram para baixo: o sangue, a solidão, o silêncio, a dor. Mas, sem sangue não há alma, sem alma não há dor. Dá muito trabalho abrir os olhos, erguer a cabeça para o mundo, respirar. A vida é feita de enormes pedaços de morte, de sufoco, de desespero. Desejo não acordar, respirar, abrir os olhos. Por outro lado, não quero deixar de ouvir, não quero deixar de dizer palavras, que rasgam a pele e apertam o coração - palavras, apenas palavras… E fugir do mar de ausências, das terríveis ondas de silêncio.
Quero ser feliz até a indecência. Toda noite cobro o preço da minha astúcia, os juros do meu carinho. Por quê os homens têm sempre de se distrair das mulheres, por quê ainda preferem o status social? Eu ainda prefiro as mulheres. Prefiro perder-me no chamamento dos olhos que tudo pedem mesmo sem dizer nada. Não quero fartar-me de carne aos bocadinhos em breves momentos de sensualidade.
Quero o deleite. Para enxergarmos o belo temos de, de vez em quando, olhar para as coisas mais banais - o ordinário da vida. Gosto da violência dos jogos de amor devastadores. Sou tão brutal quanto delicado. Sou um mouro semicivilizado. Nas noites de prazer, prefiro a fogosidade clandestina, os encontros furtivos. Consegui que o prazer seja meu único objetivo, a minha única obsessão. O prazer, aqui e agora, para sempre, sem limites. Mas tenho de pagar por ele, porque tudo tem um preço. Entretanto, nunca fui defraudado por este investimento. Não abro mão dos deleites e das sutilezas desconcertantes do prazer. E que outro meio há para gozar plenamente a vida como algo positivo e não como um atabalhoado sonho que nos escapa?
Vida: música e pão, leite e vinho, amor e sonho. Paixão: abraço mortal dos adversários que se amam. Trabalho: pagar o teu preço e cobrar o teu salário. Pai e filho: antepassado e descendente, semelhante e dessemelhante. Boca: fonte da qual brotam palavras sem sentido. Esperança: uma suave luz que reclina em nosso peito e que pouco depois desaparece. Sonhar: saber e fazer. Imaginar: nascer. Morrer: voltar para o nosso próprio nascimento.
Após tanta vigília, saio do ar. Procuro um contato. E nada. Me atiro de cabeça baixa, olhos abertos. Pra onde? Ao poço, ao fundo. Cair, cair. E, ao perder-me, regresso à escuridão.
Gosto de Santo Antônio, das bruxas, do demônio. Não gosto, da alegria volúvel misturada à luz do dia. Prefiro a noite escura e fria, o claro-escuro. Amo a luxúria, que ultrapassa muros impossíveis, vai além da consciência e explora os recantos mais terríveis e obscuros. Não acredito em anjos. No silêncio misterioso e profundo, encontro minha musa soberba e confusa, uma bruxa medonha e estranha, um Diabo com patas de cabra, de face torta e macabra. Mas, se olhá-la com mais atenção, descobrirei um cisne na sombra, alva como a neve, suave como o crepúsculo, cândida como a prata banhada de Sol. A beleza é a meia-noite nua, a luz, a luz decapitada.
Pobre Diabo, que é chamado de tudo quanto é nome: Satanás, filho da puta, filho do cão, macaco lascivo, Anticristo… Mas o Diabo talvez não seja tão mal assim: tem um teto, pão, muito vinho, mulheres. O Diabo é esperto, sabe que a Igreja guarda presentes mais úteis aos cristãos pecadores do que aos santos de gesso. O Diabo é o caçador que ronda quando os outros dormem, aquele que não necessita de sentinelas que o ampare nem de proclamações constitucionais que lhe concedam direitos que ele sabe conquistar pelos seus próprios meios. Não é duro nem cruel: o forte não precisa de o ser, embora saiba sê-lo sem remorsos. O Diabo não quer o poder, que nada mais é do que delegação e impotência próprias. O Diabo sai para fora a tentar alguma coisa, jogar dados com algum cristão incauto. A seu modo, o Diabo é um homem de valor. Se não tivesse abraçado tão apaixonadamente as  ambições e valores do rebanho, poderia ter chegado a ser amado.
Gosto do profano, não gosto do sagrado. Quando penso em Deus e todos os seus decanos - Cristo, Maria, São Sebastião, Santa Lúcia, o Arcanjo Gabriel - vejo a dor. Prefiro os demônios sorridentes, os únicos que sorriem na iconografia cristã. Sorridentes porque, nas velhas gravuras, espetam tridentes na pele dos condenados, derramam caldeirões de água fervente, violam mulheres, se embriagam, gozam a liberdade proibida aos santos. Prefiro o gozo de Lúcifer ao sangue do Cristo crucificado; prefiro as vísceras conservadas em litros de álcool às lágrimas da Virgem. Os cristãos têm apenas o prazer da devoção - ou submissão. Os pagãos, com seus olhos pintados, preferem as putas, as carícias, o incenso, os cultos proibidos, a liberdade. Os anjos não têm sexo e todos os demônios são fêmeas.
No mundo quase sempre o vício é melhor recompensado do que a virtude. Não sei me resignar. Ninguém conseguirá fazer-me acreditar nas virtudes da resignação. Não aceito censura nem limitação alguma. Sou um ateu cosmopolita, um cínico sem ódio e sem indiferença. Dizem que a solidão é necessária para alcançar a virtude. Mas a tentação é maior quando se está só. Não quero a virtude. Quero ser apenas um homem duro e forte. Quero o (des)prazer de viver até a morte perante a eternidade do provável.

Não tenho biografia, sempre duvidei da realidade deste mundo. Nada na minha vida é surpreendente. Não tenho máscara, mas sou um personagem de ficção, nenhuma pessoa. A vida poderia ser reduzida entre a realidade da vida cotidiana e a realidade da ficção. Minha índole é a heterodoxia e a oposição. Desprezo a religião, o poder público e a moral social. Debocho da modéstia, que se assemelha ao desdém. Não tenho fraquezas nem esperança. Sou subterrâneo e sombrio como uma estação de metrô, possuído pelos meus fantasmas e desprezado por eles. Gosto de ser moderno, audaz, cosmopolita. Meu corpo é ânsia, ardor e sensação pura. Sou o mundo, a carne e o inferno.