quarta-feira, 19 de outubro de 2022

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Viva a Liberdade é mais um belo filme que confirma o retorno do grande cinema italiano, que levou o Oscar este ano com o belíssimo A Grande Beleza.  Dirigido com elegância por Roberto Andò, desconhecido no Brasil, o filme fala sobre política, amor, desencanto e cinema, mas de uma maneira muito discreta e singela. Muitos classificam Viva a Liberdade como comédia, que não faz rir, mas provoca belos sorrisos no espectador. O fio condutor da trama é a política, quer dizer, a decadência dos partidos da Itália.

O personagem central é o principal líder da esquerda italiana, sufocada pela crise econômica e política da Europa.  Enrico Oliveri, interpretado pelo grande ator Tom Servillo, acuado e sem saída para o partido que lidera, entra em depressão e, simplesmente, some, deixando seus auxiliares em pânico. E é aí que surge o seu irmão gêmeo Giovanni Ernani, Servillo, de novo, professor universitário, recém-saído de uma clínica psiquiátrica. Ernani assume o lugar do irmão político e, com seu comportamento excêntrico, seduz o partido, a imprensa e, por fim, o povo. Curiosamente, Giovanni Ernani não se coloca como impostor, em nenhum momento finge ser o seu irmão político, pelo contrário, pois, sempre se comporta e age como ele mesmo, fiel às suas ideias, que salvam o partido, oposição ao governo, possivelmente, conservador, mas isso o filme não diz, deixa no ar...

Enquanto Giovanni Ernani aproveita a súbita fama, o outro irmão, Enrico Oliveri, passa a reavaliar a própria vida, se exilando na casa do grande amor de sua vida, Danielle, agora casada com um cineasta famoso. Enrico passa a viver no mundo que sempre amou de verdade, o cinema. Enrico, longe da política, revisita o passado e reaprende a viver, ao mergulhar nos bastidores de filmagens de uma produção local, em que ele arranja um bico como auxiliar.

Em Viva a Liberdade observamos o cotidiano do cinema e da política - opostos, mas ao mesmo tempo, muito parecidos um com o outro. Mas o mais notável é perceber que o filme fala sobre a crise masculina da meia idade, como a solidão, a carência e a vontade de mudar, de ter uma segunda chance. A angústia masculina é - e sempre será - de ordem amorosa. Nós, homens, ainda temos vergonha de sofrer por quem amamos. Enrico, foge para se encontrar consigo mesmo; Giovanni, não foge de nada, não tem medo de ser o que sempre foi.

A política, em Viva a Liberdade, é apenas uma convenção, um jogo de aparências, em que basta estar nos momentos certos e dizer o que todos querem ouvir. Giovanni e Enrico, são a mesma face de sentimentos que se opõem e se completam. Mais tarde, ficamos sabendo que os dois irmãos guardavam um segredo de juventude.

Viva a Liberdade é um filme melancólico, mas nunca triste, maduro, que fala sobre sentimentos, que estão na política, no cinema, em qualquer lugar.  Tom Servilo recupera a mística do personagem de A Grande Beleza, Gep Gambardella, sem se repetir, numa atuação perfeita, fazendo os dois irmãos gêmeos, um, depressivo; o outro, bipolar.

Viva a Liberdade lembra o cinema de Nanni Moretti, de O Quarto do Filho, na sua abordagem bem humorada, mas também crítica, da política e da sociedade. Mas Viva a Liberdade não faz um acerto de contas com a política, faz, na verdade, as pazes com a vida, cheia de dúvidas, frustrações, amores e desamores. O final é muito bonito. Eu gostei muito deste filme.
A Recompensa, filme que muito pouca gente assistiu, tanto aqui, no Brasil, quanto nos EUA, é ótimo, um misto de policial, comédia e drama. O destaque é a atuação do galã inglês Jude Law, que, aqui, assume a calvície e a idade. O ator não tem medo de se "enfear", quer dizer, ficar com cara de gente comum, do povo. Jude Law faz um tipo popular, um ex-presidiário que tenta mudar de vida e reconquistar o amor da filha. Dom Hemingway, título original do filme, é um sujeito quarentão, determinado, mas de pouca sorte.

A Recompensa traça um pequeno painel da Londres de hoje, movimentada, frenética e, sobretudo, marcada pela presença de imigrantes africanos e do leste europeu, especialmente, russos. Vemos neste filme uma Londres miscigenada - não diria multicultural, como muitos insistem em dizer.

O roteiro do diretor, desconhecido por aqui, Richard Shepard, é  muito bom, que sempre cria situações interessantes, criativas. E o ritmo é agitado, contagiante. Outra surpresa é a presença de um ator cult dos anos de 1990, Richard E. Grant, que estava sumido. Há também uma pequena participação da encantadora Emily Clarke, da série Game of Thrones. Mas o filme é todo do Jude Law, que está excepcional e dá um show de interpretação, sem nunca cair no exagero.

A Recompensa é um filme que fala da difícil arte de ser homem.  Dom Hemingway é um cara que tem de ser forte, mesmo tendo de encarar a carência,  a crise dos quarenta e a dificuldade de ser pai e avô, cujo neto é filho de um imigrante senegalês. Mas, ao final, apesar dos tropeços, tudo acaba bem. Ser homem dá muito trabalho, mas vale a pena.

A Recompensa é uma diversão inteligente, movimentada, com ação e muito humor, mais indicada para o público masculino,que já passou dos trinta. Um filme cativante. Eu gostei muito.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

As ruas da cidade me deixam gelado e cansado.A cidade é uma praia urbana revestida em areias de cimento.  Tento acender o amor sob a chuva. A cidade é fria, gelada e bem longe da vida. Na cidade só há coisas vulgares, que não deixam saudades, só lembranças que doem. Precisamos viver na cidade, mas tudo o que entregamos é o corpo. A vida na cidade é tão cheia de pouca sorte...  Quero sair da cidade, sair daqui, alcançar horizontes de paz, ficar perto do pulsar do sangue quente e encostar as mágoas no ombro que nos afaga as dores, que nos arrefece a raiva e nos limpa o ódio. Cansei de repousar sobre o mármore e ver tantas imagens doloridas, tanta, tanta dor. Não quero ouvir palavras perdidas, não quero ser só por ser, querer para morrer. Não vou para lugar nenhum - não tenho para onde ir... Não me escondo. A cidade é um fantasma que me desperta de mais um sono... Não durmo, não descanso, não procuro mais o sossego. A cidade é o nó na garganta, o ruído, sentimento - amor e ódio ao mesmo tempo - que me faz seguir em frente. Ferido e assustado como um cão, vou vivendo e me perdendo por aí... 

João Paulo Alberto Coelho Barreto, apesar do sobrepeso, foi o maior andarilho da cidade do Rio de Janeiro e cuja andança rendeu a mais rica e completa crônica da cidade de sua época e um dos melhores retratos da sociedade carioca. João do Rio foi autor de enorme obra literária e de vastíssima produção jornalística, a maioria desconhecida. João do Rio é um maldito da litaratura brasileira e foi muito mais do que um simples cronista de costumes. A obra de João do Rio caiu, por muito tempo, no esquecimento, que também se abateu sobre outros escritores da nossa enviesada "belle époque". O truque do Modernismo paulista de 1922 obscureceu tudo que foi feito de importante na literatura carioca, o berço do autêntico modernismo. 

João do Rio, foi um escritor genial, que escrevia com grande facilidade. Ele escreveu traduziu, plagiou, publicou, nos seus 39 anos, poderia superar, em quantidade e qualidade, a mais vasta obra de muitos  escritores veteranos. Membro da Academia Brasileira de Letras, João do Rio foi um intelctual de enorme coragem. João do Rio foi o único representante da grande imprensa que apoiou João Cândido e uma das poucas pessoas no país que defendeu o divórcio e o voto feminino.

As crônicas de João do Rio falavam do Rio dos terreiros de macumba e do samba, dos antros de prostituição, dos salões elegantes. João do Rio transitava pelas ruelas da cidade carioca com a mesma tranquilidade com que frequentava repartições do poder, que valeu a posse na Academia Brasileira de Letras, viagens e dois terrenos no bairro de Ipanema. João do Rio, um colunista social que vivia na alta sociedade, era rico, gordo, homossexual e mulato, enfim, um aristocrata fora do comum...

João do Rio retratou, como cronista, os vários aspectos da criminalidade do Rio de Janeiro. Os problemas existentes hoje na cidade já marcavam a "belle époque" do século 19: tráfico de drogas, prostituição, assassinatos brutais, delinquência, crianças de rua, prisões superlotadas. João do Rio, o dândi do colunismo social, relatava, ao mesmo tempo em que mergulhava no submundo, o lado sombrio da vida das alegres socialites em que o charme da alta sociedade não escondia o mundo do alcoolismo, das drogas, da violência e da autodestruição física e moral.

João do Rio, ao lado de Lima Barreto e Augusto dos Anjos, foi o fundador do Modernismo. Em suas crônicas, João do Rio já mostrava o amor gay sem disfarces e desmascarava toda a perversidade sexual de um Rio de cores e cheiros fortes. A linguagem enxuta de João do Rio causava furor entre os seus leitores. No seu jornal A Pátria, criticava com fervor os simbolistas e parnasianos. João do Rio defendia um estilo próximo do cotidiano da cidade. João do Rio falava do Rio dos inferninhos, das prostitutas, das madames, da Lapa, da sífilis, da tuberculose, do carnaval pornográfico, da pegação nos passeios públicos.

João do Rio nunca escondeu que prefiria rapazes, sua sexualidade nunca ficava dentro do armário, gostava de frequentar hotéis baratos com marinheiros... João do Rio advinhou o que seriam as favelas, escrevia sobre os rituais de candomblé e era saudado tanto pela ralé quanto pela granfinagem.

João do Rio foi um colunista que acompanhou transição do Rio de Janeiro de cidade colonial para capital do Brasil republicano. Quando o Rio passa a ser sucursal de Paris, João do Rio vai abandonando o enfoque antropológico da "alma encantadora das ruas". João do Rio amou tanto sua cidade que fez questão de mudar com ela. João do Rio acompanhou o bota-abaixo do prefeito Passos, a abertura da Avenida Central, as transformações dos costumes, o surgimento do automóvel, do telefone, do samba, do banho de mar. João do Rio forneceu, em suas crônicas, algumas das mais conhecidas características da Cidade Maravilhosa que existem até hoje.

João do Rio, claro, não foi santo: escrevia como poucos, mas também plagiava; negociava com construtoras em troca de terrenos; vivia em torno das futildades da alta sociedade; praticava certas bajulações e conchavos extra-oficiais com poderosos que lhe valeram o fardão; era adepto voraz de uma gula "pentagruélica", que sempre o acompanhou.

A literatura ambígua e decadentista de João do Rio o transformou num escritor dos contrários. A obra de João do Rio revelava uma loucura que inspirou outro escritor que também gostava de obscenidades, o genial Nelson Rodrigues. João do Rio falava do subterrâneo da cidade para retratar a sordidez escamoteada do próprio homem, da própria sociedade. Luz e trevas estão presentes na escrita ousada de um autor que viveu pouco, mas escreveu muito - João do Rio, o aristocrata fora do esquadro, que tinha tudo para dar errado e nos deu muito. 
 O colunista do mundano, do estranho, do sórdido, do "high society", dos párias sociais, dos rejeitados e decadentes, falava sobre obscenidades que guardavam um certo maniqueísmo. É impossível resistir aos encantos deste andarilho que transitou pelos becos silenciosos do desejo e revelou, com um século de antecedência, tudo o que nós, cariocas e brasileiros, somos hoje.


Achei num sebo no Centro do Rio um livro de 1995, Os Crimes do Olho-de-Boi, escrito pelo saudoso Marcos Rey. É um livro curto, 216 páginas, simples, popular em estilo, mas inteligente. Os Crimes do Olho-de-Boi é uma história policial que tem como principal personagem um detetive bem brasileiro. A trama se passa numa grande cidade de São Paulo onde o Adão Flores é um investigador comum, sem nenhuma sofisiticação, formado pela TV. Adão Flores era uma apresentador de um popular apresentador de um programa de televisão, meio mundo cão, em que ele desvendava os mais variados tipos de crimes. Quando o programa chega ao fim, Adão Flores começa a ser solicitado por pessoas que acreditam no seu talento para desvendar crimes. E Flores, de investigador amador, transforma-se em detetive. E este detetive utiliza os seus dotes, digamos, artísticos de homem de TV para desvendar uma série de assassinatos. A nova vida de detetive de Adão Flores dá uma guinadfa inusitada quando ele é praticamente obrigado a investigar o caso de uma quadrilha especializada em assassinatos de pessoas ricas.

Adão Flores, não é um detetive sofisticado, ele não é policial, não tem nível superior, não é um técnico. Adão é uma figura comum, popular, gordo e meio desengonçado. Os métodos de investigação de Flores são bem simples e não fica difícil para o leitor descobrir quem são os culpados da história.

O charme do romance está na maneira como é descrita a cidade de São Paulo. A história se passa em boates, inferninhos e ruas do grande Centro que são descritas em detalhes tão interessantes que acabam se transformando no principal elemento da trama. O submundo paulistano é o contraponto ao espaço da elite endinheirada, que é vítima e algoz de sí mesma. A noite noturna de São Paulo tem como personagem central a prostituta Diana Bandida, deliciosamente caricata como o próprio nome. Há ainda a governanta alemã, personagem que introduz o investigador ao universo dos ricaços.

A trama de Os Crimes do Olho-de Boi é simples como seu protagonista Adão Flores, apesar do final surpresa, mas tudo funciona e convence. O mértio do romance é criar herói tipicamente brasileiro: malandro, popular, divertido. Adão Flores é um tipo forjado pelas telas da TV, próximo do povo, um sujeito que conhece bem o lado sórdido da sociedade e que sabe que o jeitinho brasileiro é um modo de se virar na vida. E é com este jeitinho que ele desvenda seus casos de forma criativa e original. Adão Flores, um sujeito maroto, mas honesto, é um produto tipicamente pop, mas um pop à brasileira, meio trash, meio cafona.

Infelizmente, Os Crimes do Olho-de-Boi é uma aventura que teve o mesmo fim do todos os programas populares que saem do ar e caem no esquecimento do espectador. Mas o personagem Adão Flores é um personagem vivo, verossímil, que encontramos nos ambientes em que se passa a história, os bairros populares, as ruas chiques, os Ban fonds, os bares, locais em que o povo transita das mais diversas formas. O livro de Marcos Rey não foi notado, mas nos deu personagem um mítico que mora no inconsciente do todo brasileiro.


A cidade tem um muitos defeitos, mas o pior deles é a capacidade que ela tem de marginalizar, com extrema facilidade, as pessoas. A cidade é o terreno do anonimato e do gueto. A cidade destrói qualquer possibilidade de solidariedade. A cidade desenraíza as pessoas, não soluciona e até agrava problemas como a pobreza e o desemprego. Os excluídos só encontram solidariedade entre os seus iguais e em abrigos. Hoje, cada canto serve de refúgio para os dependentes de tudo - e que não têm nada. Essas pessoas não vivem, se escondem. Se escondem dos cidadãos de bem, que os veem como uma ameaça. Na verdade, todos nós, inclusive os que vivem sob os escombros, que também fazem parte da sociedade, somos exemplos da decrepitude urbana, o espelho de outros tempos e a morte de muitos sonhos.